PARABÉNS A TODOS OS GEÓGRAFOS!
A G E O G R A F I A
ISSO SERVE, EM PRIMEIRO LUGAR, PARA FAZER A GUERRA
Y V E S L A C O S T E
Transcrevo aqui parte da "Apresentação" do livro de Yves Lacoste por Willian Vesentini.
"Não se deve aceitar sem mais os termos usuais de um problema, escreveu em1935 um conhecido filósofo. A atitude crítica implica aqui em repropor, recriar ainterrogaçao, pois não há uma pergunta que resida em nós e uma resposta que esteja nas coisas: a solução está também em nós e o problema reside também nas
coisas. Há algo da natureza da interrogação que se transfere para a resposta. Yves Lacoste, neste livro, parece ter assimilado de forma notável esse ensinamento. Procurando interrogar a geografia, o saber geográfico e as práticas que o constituem ou implementam, Lacoste deixa de lado algumas velhas e renitentes questões e propõe outras.
A pergunta essencial, que perpassa todos os capítulos da obra e norteia seus conteúdos, é esta: para que serve a geografia? Ou, em outros termos, qual é a sua função social? Possui ela alguma outra utilidade que não seja a de dar aulas de geografia? (e, afinal, por que existem essas aulas?) Os termos usuais dessa
problemática, como sabemos, costumam ser outros: o que é geografia? Ela é ou não uma ciência? Ao reelaborar essas questões, o Autor evita o ardil positivista do "objeto específico de estudos" a ser delimitado - complementar àquele da cientificidade como deus ex machina dos dramas da Razão -, enveredando por um terreno mais profícuo: o da práxís dos geógrafos, do papel político-estratégico desse saber denominado geográfico. A principal resposta que Lacoste fornece ao seu questionamento constitui o próprio título do livro: isto - a geografia - serve em primeiro lugar (embora não apenas) para fazer a guerra, ou seja, para fins politico-militares sobre (e com) o espaço geográfico, para produzir/reproduzir esse espaço com vistas (e a partir) das lutas de classes, especialmente como exercício do poder. Ser ou não ser de fato uma ciência pouco importa, em última análise, argumenta o Autor. O fundamental, a seu ver, é que, malgrado as aparências mistificadoras, os conhecimentos geográficos sempre foram, e continuam sendo, um saber estratégico, um instrumento de poder intimamente ligado a práticas estatais e militares. A geopolítica, dessa forma, não é uma caricatura e nem uma pseudogeografia; ela seria na realidade o âmago da geografia, a sua verdade mais profunda e recôndita.
Duas são as formas de geografia que existem hoje, na interpretação de Lacoste: aquela dos pesquisadores universitários e dos professores, das teses e monografías, das lições de sala de aula e dos livros didáticos - e também a "turística" dos meios de comunicação de massas e das enciclopédias (o Autor não homogeneiza todas essas variadas modalidades de "geografia", mas apenas as coloca num mesmo lado dessa sua percepção binária); e aquela outra, a fundamental, praticada pelos estados-maiores, pelas grandes empresas capitalistas, pelos aparelhos de Estado. Esta última é a mais antiga, tendo surgido desde o advento dos primeiros mapas, que seriam provavelmente coevos da organização societária com o poder político instituído enquanto Estado. E a "geografia dos professores" é mais recente, do século XIX, tendo sido engendrada especialmente para servir como discurso ideológico de mistificação do espaço, de "cortina de
fumaça" para escamotear a importância estratégica de saber pensar o espaço e nele se organizar. Ao se dirigir de forma particular a estes últimos, aos pesquisadores universitários e professores de geografia, que são os interlocutorespor excelência desta obra, Lacoste reitera insistentemente uma advertência: temos que assumir aquilo que sempre exorcizamos, isto é, nossa função de estrategistas, de saber-pensar o espaço para nele agir mais eficientemente. Superar o viés ideológico da geografia, nesses termos, nada mais seria do que encetar uma “geopolítica dos dominados", um saber-pensar o espaço na perspectiva de uma resistência popular contra a dominação. Incorporar e primaziar o político na abordagem geográfica: esta é, portanto, a grande proposição que este livro divulga e ilustra em filigrana praticamente a cada página. Mas não se trata de a política e sim de o político. Não o indivíduo que se ocupa profissionalmente dessa atividade e sim o processo, o fenômeno ou o enigma do político enquanto experiência fundante do social-histórico e, dessa forma, também do espacial (ao menos na sociedade moderna). A política sugere lugares teóricos ou fatos instituídos, com inteligibilidade pressuposta (temos o "espaço" da política com referência ao da economia da ciência, etc.), ao passo que o político pretende dar conta também do instituinte e do indeterminado, do poder como relação social que vai muito além das idéias, símbolos ou práticas engendradas a partir (ou com vistas) do Estado e dos partidos políticos (sejam legais ou clandestinos). A razão-de-ser da geografia seria então a de melhor compreender o mundo para transformá-lo, a de pensar o espaço para que nele se possa lutar de forma mais eficaz.
Mas de que mundo se trata? Qual é a expressão ontológica desse espaço tematizado pela geografia? Apesar das implacáveis e pertinentes críticas que faz à escola geográfica francesa, neste Ponto Lacoste se revela um herdeiro e continuador dessa tradição: a geograficidade (neologismo criado por analogia com
historicidade), para ele, se define essencialmente com referência à cartografia e, de forma especial, à noção de escala. Assim como o grande pensador de lena proclamava que tudo que é real é racional e tudo que é racional é real, pode-se dizer que para Lacoste o "real", o espaço geográfico, é tão somente aquilo que pode ser mapeado, colocado sobre a carta, delimitado portanto com precisão sobre o terreno e definido em termos de escala cartográfica. Temos aqui o aspecto nodal da metodologia lacosteana, o aproche a partir de onde esse geógrafo francês profere agudas críticas às referências espaciais de militantes políticos, historiadores, sociólogos e outros, mas que, paradoxalmente, permite revelar com clareza os limites dessas mesmas críticas e das propostas de análise que elas implicitamente encenam. Procurando construir uma rica estrutura conceitual que dê conta do espaço geográfico hodierno, sendo este visto por um prisma empírico-cartográfico, Lacoste exproba as ambigüidades de noções como "país", "região", "Norte-Sul", "Centro-Periferia", "imperialismo" e outras, e propõe como ponto de partida para se redefinir tais problemas as idéias complementares de "espacialidade diferencial" e diferentes "ordens de grandeza", em termos de escala dos fenômenos espaciais. Nesse ato de identificação do geográfico ao cartografável, contudo, acaba-se estreitando o campo do político e denegando importantes aspectos das relações de dominação. O corpo, os conflitos de gerações, os problemas da mulher e do feminismo, as classes sociais como autoconstituição pelas experiências de lutas: esses temas, e outros congêneres, estão a princípio interditados ao métier do geógrafo, conforme fica explícito na parte do livro onde o Autor desanca aqueles que pretendem orientar uma geografia política em direção ao poder visto ao nível de relações não-cartografáveis. Não se estaria assim condenando o geógrafo a somente estudar as aparências? Apesar da palavra dialétíca, que Lacoste utiliza neste e noutros livros, não seria essa uma opção de reservar à geografia apenascertos aspectos da realidade tal como ela pode ser entendida pela lógica identidárla?
É fora de dúvida que este é um trabalho (ou um ensaio-panfleto, na designação que lhe deu François Châtelet, aceita depois por Lacoste e incorporada à terceira edição francesa) polêmico, de denuncia e de chamamento à responsabilidade política. Inúmeras idéias poderiam ainda ser questionadas: a simplificação do papel social da "geografia dos professores", a não-percepção das relações sujeito-objeto e da historicidade do saber e da prática na concepção demasiado ampla de geopolítica, a mitificação ou fetichismo das cartas elaboradas pelos poderes instituídos, etc. Mas nenhum questionamento de tal ou qual aspecto da obra poderá anular os seus méritos, que são muitos e significativos. Trata-se seguramente de uma das mais importantes análises críticas feitas nas últimas décadas, no bojo da "crise da geografia", com idéias extremamente controversas, porém originais e instigantes. Em suma, um texto de leitura obrigatória para todos aqueles que se preocupam com a história dos conhecimentos geográficos, com o ensino da geografia, com o espaço enquanto dimensão material dos entrelaçados dispositivos de poder e de dominação".
Veja mais no link:
http://www.geoideias.com.br/geo/images/livros/a%20geografiaIves%20Lacoste.pdf
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http://www.geoideias.com.br/geo/images/livros/a%20geografiaIves%20Lacoste.pdf
pcnp Geografia-27/05/2013